Saturday, May 27, 2006

Lisboa Queirosiana: A tragédia da Rua de São Francisco*



(Rua de S. Francisco)

«... Mas a ideia de «incesto», todas as consequências desse silêncio lhe apareceram, como vivas e pavorosas, flamejando no escuro, diante dos seus olhos. Poderia ele**, tranquilamente, testemunhar a vida a dois - desde que a sabia «incestuosa»? Ir à Rua de S. Francisco, sentar-se-lhes alegremente à mesa, entrever, através do reposteiro, a cama em que ambos dormiam - e saber que esta sordidez de pecado era obra do seu silêncio? Não podia ser... Mas teria também coragem de entrar, ao outro dia, no quarto de Carlos, e dizer-lhe em face: «Olha que tu és amante de tua irmã»?

...

«... Ia à Rua de S. Francisco.
Mas não se apressava, a pé pelo Aterro, abafado num paletó de peles, acabando o charuto. A noite clareara, com um crescente de Lua entre farrapos de nuvens brancas, que fugiam sob um norte fino.
Fora nessa tarde, só no seu quarto, que Carlos decidira ir falar a Maria Eduarda - por um movimento supremo de dignidade e de razão, que ele descobrira e que repetia a si mesmo, incessantemente, para se justificar. Nem ela nem ele eram duas crianças frouxas, necessitando que a crise temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo Vilaça: mas duas pessoas fortes, com o ânimo bastante resoluto, e o juízo bastante seguro, para eles mesmos acharem o caminho da dignidade e da razão naquela catástrofe que lhes desmantelava a existência. Por isso, só ele, devia ir à Rua de S. Francisco.


(Os Maias)

* Actualmente usa o nome de Rua Ivens. Nesta rua vivia Maria Eduarda, irmã e amante de Carlos. Também é a rua do Grémio Literário.
** Ega que acaba de tomar conhecimento que Maria Eduarda é irmã do próprio Carlos.



(Rua de São Francisco, a fachada do prédio cor de rosa é a do Grémio Literário)

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